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Maputo
Alguns amigos, conhecedores de nossos hábitos ciganos (casados há 12 anos, já moramos em cinco cidades, sete casas diferentes) nos perguntam às vezes: “quando saírem de Maputo, para onde vão?” Não sei ainda. Mas sei que quero morar em uma cidade que não seja um grande banheiro público, onde cada árvore e cada poste não seja visto como um mictório. Está aí uma coisa realmente desagradável. Na verdade, divide-se em duas situações desnecessárias: o cruzar com pessoas a urinar em toda parte e o cheiro que fica quando essas pessoas se vão.
O assunto pode parecer banal quando se vive em um lugar no qual o xixi na rua é assunto só no carnaval. Mas isso 365 dias por ano é nauseabundo, para dizer o mínimo. E é tão sério aqui que já ganhou espaço (e muito) no blog do conceituado sociólogo Carlos Serra e até tem sido alvo de políticas públicas. Em 2007, Carlos Serra perguntava: Por que urinamos e defecamos ao ar livre? E ele mesmo sugeriu cinco hipóteses, para abrir a discussão: (1) Porque as pessoas não têm hábitos de higiene; (2) Porque não existem sanitários disponíveis; (3) Porque as pessoas possuem ainda hábitos rurais; (4) Porque não existe o sentido do pudor; (5) Porque se considera que o mar e os rios são sanitários naturais e ideais. O sociólogo observa que “urinar nas ruas, nos muros e nas árvores da cidade de Maputo é uma prática tradicionalizada. Não existe qualquer sentido de contravenção penal”. No post Imbróglio: como se evitar a xixização urbana?, ade 2008, Carlos Serra observa, logo de cara que a pergunta é terrível, mas que vinha sendo sugerida pelos leitores, que pediam ao blog uma campanha anti-xixi. Outra blogueira, a Luisa Black, autora do blog Devagar…, conta sua experiência pelas ruas da cidade e sua visão da situação esdrúxula que vivemos: “Quem, como eu, anda pelas ruas e quem, como eu, gosta de apreciar a diversidade que vibra por todo o lado, vai certamente surpreender-se com a população a fazer descontraidamente xixi na rua… Então, quando não chove, cheira mal. Não há casas de banho públicas na cidade. Há quem venha diariamente de longe… sem ter o hábito de ir ao café, luxo de poucos… Fazer o quê?”. E o assunto parece ser recorrente, porque, assim como vimos posts do Carlos Serra de 2007 sobre o assunto e agora aqui estamos a tratar de novo do mesmo, as notícias sobre tentativas do governo de resolver isso também se repetem. O jornal Notícias, de janeiro de 2007, traz matéria onde o governador de Nampula, Felismino Tocoli, defende a “aplicação de medidas administrativas como forma de eliminar o fenômeno do fecalismo a céu aberto no município da Ilha de Moçambique, considerado uma das causas que, no ano anterior, contribuiu para a redução significativa do número de turistas naquela região, além do surgimento de doenças, sobretudo a cólera“. De acordo com o texto do jornal, o governador pressupõe que as pessoas sabem do perigo que o fecalismo a céu aberto constitui para a saúde pública. Informações da matéria dão conta que em 2006 a Ilha de Moçambique teve mais de 600 pessoas afetadas por cólera, cinco delas tendo morrido. Recentemente, em notícia de 25 de julho deste ano, o blog Moçambique para Todos traz mais uma vez o assunto, mais uma vez tendo como exemplo a Ilha de Moçambique. A administração do lugar resolveu aplicar uma nova estratégia para combater o que o jornal chama de fenômeno: construir barracas de vendas de produtos alimentares ao longo da costa. Apesar da apreensão que me causou ver a informação, o que se seguiu foi alentador: parece que a medida (arriscada, convenhamos) surtiu efeitos positivos. A iluminação das barracas e o movimento de pessoas que estas promovem têm sido elementos desencorajadores para a prática de fazer cocô e xixi na praia. Observemos, no entanto, que o administrador da Ilha de Moçambique, António Saúl, contou ainda que, paralelamente, têm sido realizadas atividades desportivas nas praias, bem como campanhas de limpeza e de sensibilização sobre a necessidade do uso de latrinas ou sanitários públicos, que foram construídos em certas zonas do município. Ou seja, talvez apenas a punição não seja o caminho. Talvez em 2007 as pessoas não soubessem tanto dos perigos da nauseabunda ação como pensava o governador Felismino Tocoli. Vamos acompanhar se a solução acontece de fato na Ilha de Moçambique e, caso o resultado seja positivo, torcer para que seja replicada em outras zonas do país. Sandra Flosi
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Faz mais de um ano eu contei aqui que em Moçambique, a fruta caqui é chamada diospiro. Pois hoje eu descobri mais uma sobre a mesma fruta. A árvore do caqui/diospiro é da mesma família do ébano. Pode ser óbvio para alguns leitores, mas para mim é pura novidade.
Eu descobri porque queria falar do artesanato de Moçambique. O mais conhecido é o feito em pau preto, que é justamente o ébano… Essa madeira, especialmente, no miolo dos troncos, é muito escura e densa. Por isso, é um artesanato difícil de ser feito. Como me explicou um artesão outro dia “aleija muito as mãos no trabalho”. Há em Maputo, inclusive, a Feira do Pau. É uma feira de artesanato em geral, mas com forte presença do artesanato em pau preto, que acontece todos os sábados, entre 10h e 16h, na avenida Samora Machel, ao lado da praça 25 de junho. Para além do artesanato em pau preto, há muitos produtos em sândalo, tecido, conchas, barro, pedra sabão, folha de bananeira, enfim, uma diversidade imensa de materiais. O único senão da feirinha é a falta de estratégia de venda dos expositores. Na ânsia de vender, eles voam para cima das pessoas que estão apreciando a arte feito mosca em rosca de padaria. E ficam falando “venha ver minhas peças… é só para apreciar, não precisa comprar”. Mas vinte pessoas fazendo isso ao mesmo tempo, não permitem nem mesmo que se aprecie. O potencial cliente fica aborrecido e vai embora sem levar nada. Eu mesma já quis muito apreciar com calma o trabalho, mas nunca consigo e acabo saindo de mãos vazias. De uns tempos para cá, há uma alternativa bem interessante, que é a FEIMA (Feira permanente de artesanato, gastronomia e flores na cidade de Maputo), fica no Jardim Parque dos Continuadores, que está entre as avenidas dos Mártires da Machava e Armando Tivane. Lá funciona todos os dias, das 10h às 18h, com algumas barracas ficando até 19h. Tem os mesmos tipos de artesanato, com mais opções de roupas e batiques que na Feira do Pau. A vantagem é que na FEIMA cada expositor tem seu espaço (enquanto na Feira do Pau, há expositores que ficam perambulando, sem lugar fixo). Então, você passa por ele e ele não vai atrás de você. Mesmo assim, é meio chato, porque você está a apreciar uma barraca e o camarada da barraca do lado fica chamando. É um pouco inconveniente, mas da última vez que eu fui lá resolvi botar ordem na casa. Eu queria ver todos os trabalhos e com calma. Então, quando cheguei já fui logo avisando: “vou ver tudo, de todo mundo e comprar o que eu quiser e não o que for de quem me perturbar mais. E se um vier pedir para ver as suas peças enquanto eu estiver vendo o trabalho do outro, vou embora e não compro nada”. A informação correu de barraca em barraca e consegui, durante uma hora e meia, ser bem pouco importunada e apreciar muita coisa linda. Outra vantagem da FEIMA é as barracas terem cobertura, o que ajuda muito na época do verão. Na Feira do Pau, a exposição é a céu aberto. Mas as duas têm aquela coisa chata de você ter que pechinchar para conseguir um preço razoável. Sempre se consegue diminuir uns 40% no valor inicial. Se for dia de movimento fraco, então, se diminui até mais. Um terceiro lugar muito bom de fazer esse tipo de compra é o Centro Juvenil de Artesanato – Mozarte. É um centro mantido pelo Ministério da Juventude e Desportos, que fica na avenida Filipe Samuel Magaia, entre as avenidas Ho Chi Min e Josina Machel. Lá você não tem contato com os artesãos, o que é uma desvantagem. Mas a vantagem é saber que são adolescentes em situação de vulnerabilidade social, que aprendem o artesanato no próprio centro Mozarte e têm lá o espaço onde suas obras são comercializadas. Os preços são bastante justos, o que já torna desnecessário entrar na negociação de pechincha. Lá funciona de segunda a sexta-feira, das 9h às 16h30, e aos sábados das 9h às 13h. Esses são os lugares que eu gosto de freqüentar por aqui quando o assunto é artesanato. Mas, mesmo quando não vamos a eles, caminhando pelas avenidas 24 de julho ou 25 de setembro, sempre é possível cruzar com um vendedor ambulante com boas peças nas mãos. Veja outras impressões sobre o artesanato moçambicano no post A economia do artesanato, de Fernando Aidos, publicado no blog Perspectiva Lusófona. Saiba mais sobre o artesanato em Moçambique, visitando o site do Cedarte (Centro de Estudos e Desenvolvimento do Artesanato). Sandra Flosi Nos últimos dias estive envolvida com a formação de voluntários para os X Jogos Africanos. O evento vai acontecer nas províncias de Maputo e Gaza, de 3 a 18 de setembro próximo. Participam dos jogos 48 países do continente africano, na disputa de 24 modalidades esportivas. O evento promete movimentar o sul do país. O Cojito, mascote do evento, já pode desde agora ser visto em cartazes, outdoors e banners espalhados pela cidade.
Para receber os jogos, seis mil voluntários estão sendo preparados e a formação deles em diversas áreas, como protocolo, bem servir, emergência em saúde e outros foi feita pela empresa AR Broadcasting, que me contratou para o curso na área de comunicação (como se comunicar com os diferentes públicos que estarão presentes, comunicar bem para servir bem, o papel do voluntário, a importância da comunicação correta, que tipo de informação é necessária em um evento como esse, etc.) Foi uma experiência muito boa. O contato com seis mil pessoas que trabalharão como voluntárias no evento, de variadas faixas etárias, com diferentes experiências de vida, que chegaram a este trabalho por diversas formas, foi muito enriquecedor. No final do curso eu sempre abria espaço para ouvir os participantes e nessa hora todos ganhávamos. Aprendi muito com os voluntários, tive contato com gente que está realmente interessada em ajudar seu país a fazer o melhor evento e mostrar que é capaz. Tenho certeza que o sucesso dos jogos vai contribuir para que essas pessoas percebam que são capazes de ir além e fazer muito por seu país. Espero que essa disposição contamine aqueles que estão próximos dos voluntários e que se inicie então um clico virtuoso de auto-estima, que o moçambicano precisa tanto. Boa sorte e bom trabalho a todos os envolvidos nos X Jogos Africanos! Sandra Flosi Recentemente descobri o site do Guia Turístico de Moçambique. Traz informações sobre clima, fauna, flora, cultura do país e das províncias.
É muito bem feito. Nele se descobre, por exemplo, que os povos primitivos de Moçambique foram os bosquímanes (ou bosquímanos ou khoisan). Entre os anos 200 a 300 D. C. é que vieram os povos bantos, oriundos da região dos Grandes Lagos, que empurraram os povos originais da região para áreas mais pobres, ao Sul. No final do século VI, surgiram nas zonas costeiras os primeiros entrepostos comerciais patrocinados pelos Swahilárabes que procuravam a troca de artigos por ouro, ferro e cobre vindos do interior. No século XV é que se inicia a dominação portuguesa, com a chegada de Pêro da Covilhã às costas moçambicanas e o desembarque de Vasco da Gama na Ilha de Moçambique. Tem informações sobre como tirar o visto para ingresso no país, a moeda (o metical), feriados, endereços e telefones de embaixadas, aeroportos e muito mais. Além, claro, de dicas de locais para se visitar. Tudo muito completo, com endereços de lugares para se hospedar, compras, informações de serviços e lazer. Percebi que ainda tem informações a serem completadas, mas, no geral, é uma boa dica para quem visita o país. Sandra Flosi Tem sido muito difícil encontrar situações diferentes das que estava acostumada no Brasil e não generalizar, não pensar que todos em Moçambique fazem da mesma forma. Mas tento sempre lembrar que estou em Maputo, que representa apenas uma cidade, no sul do país. No entanto, quando ouvimos um mesmo tipo de história que se repete com várias pessoas, a tendência é achar que acontece mesmo em todo lugar.
Não sei se as relações trabalhistas fora de Maputo são diferentes do que se vê aqui. Vou tentar investigar e contar depois. Mas fico sabendo de cada caso… de arrepiar até o último fio de cabelo. Muitas vezes, tem a ver com o senso de propriedade que o patrão tem de seu empregado. Já falei aqui sobre a questão dos turnos. Ela mostra o quanto o empregador quer o empregado dependente e totalmente vinculado a ele, sem poder sequer estudar e se desenvolver. Outra situação que tem a ver com essa exigência de comprometimento além da medida do razoável é a divisão dos problemas sem divisão de lucros. A não ser algumas empresas multinacionais, que oferecem alguma espécie de abono a seus funcionários no final do ano (quando o ano foi bom, claro), em geral, aqui não existe a discussão da divisão dos lucros. Afinal, o lucro é do dono e quanto mais melhor. Mas se a empresa tem prejuízo, aí é de todos. Já ouvi algumas histórias que ilustram isso e vou relatar duas. Um sujeito abriu uma empresa na expectativa de ter muitos clientes logo no primeiro mês. Contratou dois ou três funcionários, que assinaram um contrato de trabalho para receber determinado valor no fim do mês. Os funcionários iam todos os dias. Eu mesma vi vários dias eles sentados à frente da empresa, à espera de trabalho. Mas os muitos clientes que o dono achou que teria não apareceram. Ao final de um mês, os funcionários não tinham trabalhado praticamente nada. No dia de pagar, o patrão informou que pagaria só a metade, porque eles não tinham trabalhado o tanto que se esperava. Em nenhum momento durante o mês isso foi discutido ou essa possibilidade foi colocada aos empregados, para que eles pudessem se prevenir ou até escolher se ficariam ali ou não. A parte deles no negócio foi feita. Foram todos os dias e esperaram ter trabalho para executar. Tentaram argumentar isso e muito mais, mas o patrão foi irredutível. Para não ficar sem nem a metade do valor, aceitaram. Brigar na justiça poderia levar tempo e os filhos em casa têm fome. Em outro caso, uma pessoa trabalhava na área administrativa de uma loja de móveis. Em determinada semana, houve pouco movimento na área dela. O dono da loja observou e avisou: no fim do mês, não vou pagar por essa semana, você quase não trabalhou. Mas ela esteve lá todos os dias, no horário, tendo ou não muito trabalho a fazer. Não importa, a lei de certos patrões aqui diz: trabalha menos, recebe menos. Ainda que não se trate de trabalho que dependa de comissões, ainda que haja um contrato dizendo o valor fixo do salário. Eu tenho percebido que, na média, as empresas moçambicanas carecem muito de falta de planejamento. Eu nunca fui amiga dos planejamentos empresariais feitos em reuniões mirabolantes, que definem missões, visões, objetivos estratégicos e depois ficam guardados em uma gaveta esperando as próximas reuniões de planejamento estratégico. Mas acho que o mínimo de organização e previsão para o futuro da empresa deve existir. Exatamente porque a empresa lida com muitas vidas e atinge muitas famílias, deveria ter a seriedade e a responsabilidade de arcar com suas ações. Se uma pessoa abriu uma empresa e não tinha dinheiro sequer para pagar o primeiro mês de salário de dois funcionários, contava apenas com o que possivelmente entraria dos clientes, essa pessoa não deveria sequer ter aberto a empresa. Mas não é assim que temos visto funcionar… E o pior é que quando conto, nas rodas com os amigos, os casos que conheço das difíceis relações trabalhistas por aqui, sempre tem alguém que conta uma nova história do gênero, que já viveu ou viu outro alguém vivendo situação parecida. Sandra Flosi Um barulho na madrugada nos acorda. Vamos até a varanda ver o que se passa e o vizinho tem uma discussão com o segurança. Mesmo do segundo andar é possível perceber que o vizinho está bastante alterado pelo álcool. Não temos como interferir. Voltamos para a cama, para tentar dormir, apesar da barulheira na rua.
Minutos depois toca a campainha. É o segurança, reclamando que o vizinho bateu nele, porque o pegou cochilando. Não foi a primeira vez que isso aconteceu. Há cerca de dois meses, outro segurança tocou a campainha de casa, chorando, afirmando ter apanhado do vizinho. Desta vez era mais cedo, ainda estávamos acordados. Fomos ao encontro do vizinho, na escada, ver o que se passava. Em momento nenhum ele negou ter dado safanões no empregado. E quando tentamos argumentar que talvez essa não fosse a melhor maneira, ouvimos: “vocês são estrangeiros, não sabem nada. Aqui funciona assim, se não for assim, não trabalham”. Vale observar que ele pode até ter nascido em Moçambique, mas é visto como estrangeiro pelos moçambicanos nativos “de raiz”, porque é de origem indiana. É o chamado “munhé”. Como o cheiro do álcool já estava quase nos deixando bêbados, resolvemos não discutir nessas condições e tudo que fizemos foi aconselhar o segurança a procurar a esquadra (delegacia) e relatar o ocorrido. O jovem o fez e no dia seguinte pediu demissão. Nunca mais tivemos notícia do caso. Em conversa com outro funcionário do prédio depois da segunda ocorrência, soube que este também já tinha sofrido agressão por parte do mesmo vizinho. Eu não tinha ficado sabendo e acho que nem ficaria se não tivesse puxado o assunto. Ele comentou que já aconteceu com ele, assim, como se comenta que se comeu pão com manteiga de manhã. Para ele, pode não ter sido bom, mas é algo visto como normal. Provavelmente, pela polícia também. Porque o segundo que bateu à nossa porta também fez registro de ocorrência na delegacia e até agora não temos notícia de que tenha acontecido nada em nenhum dos dois casos. Já relatei aqui, em outro texto desta série sobre as relações trabalhistas em Moçambique, que a violência física é algo tratado como parte da relação trabalhista. Para mim, nunca uma herança tão obscura dos tempos da escravidão poderá ser aceitável. Juntando os casos relatados no primeiro texto da série e esses que aconteceram literalmente na porta da minha casa, percebo muito das razões pelas quais todo trabalhador em Maputo é tão submisso, tem sempre cara triste, ar pesado e fica até surpreso quando nos dirigimos a ele para um obrigada ou qualquer outra palavra de educação que se deve usar normalmente a alguém que está a te servir. Sandra Flosi Há alguns meses tive que realizar uma série de contratações de professores. Nas entrevistas, os que mais me interessavam, os profissionais atuantes em emissoras de rádio, televisão ou agências de comunicação, sempre apresentavam um problema: os turnos de trabalho em seu emprego principal.
Explico: a escola seria um emprego secundário, uma vez que o profissional viria para uma hora e meia ou duas horas e trabalho e receberia no fim do mês um valor correspondente a isso e não a um salário cheio para sustentar a família. No entanto, em seus trabalhos, seus horários não são fixos. Uma semana faz a manhã, na outra faz a noite, e na terceira nem se sabe. Há empresas que definem o turno dia a dia. Hoje, ao sair, o funcionário fica sabendo a que horas vai trabahar amanhã. Assim, não se pode marcar uma consulta médica, não se pode fazer um curso, não se pode ser professor. E eu argumentava: “mas se disser à sua chefia que vais dar aula, isso é bom para a empresa, ter um funcionário que é professor… não consegues negociar para ficar sempre no mesmo horário?”. Aí é que a coisa piorava. A chefia não poderia nem sonhar que seu funcionário estava dando aulas. Alguns até conseguiram um jeito para dar as aulas em cursos de curto período (são todos cursos de cerca de três meses, profissionalizantes), trocando os turnos com colegas, semana a semana, em um super esquema de ajuda sem que as chefias desconfiassem. Mas, se fossem descobertos, teriam que escolher. Afinal, na visão dessas gerências e diretorias, ter um rendimento extra não é interessante, porque o funcionário passa a não depender totalmente daquela empresa e pode começar até a exigir direitos. Depois, tive mais uma vez contato com o problema dos turnos quando um rapaz interessado em fazer o curso de digitação rápida, que dura um mês, disse que não conseguia fazer porque no supermercado onde trabalha a cada semana ele tem o horário alterado. Então, ele só poderia vir semana sim, semana não, uma vez que o curso é sempre no mesmo horário. Como o curso é bastante individual, cada aluno tem um computador e segue suas lições independente dos outros, ele fez a matrícula e está a freqüentar o curso em dois meses. Semana sim, semana não, ele está lá. Na mesma época, um amigo moçambicano resolveu mudar o esquema de trabalho em sua empresa. Até então, metade dos funcionários trabalhava pela manhã e início da tarde e a outra metade entrava no fim da manhã e ficava até o início da noite. Todos faziam os mesmos horários todos os dias. Assim, os que entravam no fim da manhã podiam se programar para fazer cursos e ter compromissos próprios de manhã e os que saíam no meio da tarde tinham o fim do dia para isso. Três desses que entravam cedo estavam até a fazer faculdade à noite. Eis que o amigo vem comentar comigo que vai alterar: vão trabalhar cada semana num turno. Eu tentei argumentar que não seria justo com aqueles que faziam faculdade, que não poderiam mais cursar indo uma semana sim outra não. E, por outro lado, a empresa não ganhava nada com isso, porque o número de funcionários em cada horário continuaria o mesmo. “Se o funcionário tem comprometimento com a empresa tem que ser assim, não pode ter outras coisas para fazer, tem que se dedicar com exclusividade até que a empresa tenha condições de permitir isso”, foi o que ouvi. Contando os casos para uma outra amiga, brasileira, que trabalha na área administrativa de uma empresa, ela falou que sofre com questão semelhante, porque o dono da empresa não facilita em nada o acesso dos seus funcionários ao estudo. Se um funcionário pede para sair uma hora mais cedo porque se matriculou na escola, ela pede o comprovante da matrícula com o horário e adapta a jornada do funcionário, diminuindo o horário do almoço até o limite permitido pela lei ou fazendo com que entre mais cedo. E então, o dono da empresa, desautoriza e diz que não se pode dar flexibilidade para esses casos. O que ele chama de “esses casos” poderiam ser a contribuição para uma empresa melhor, com funcionários mais bem qualificados, gente mais produtiva e, com certeza, animada para trabalhar, em reconhecimento pela empresa ter contribuído com sua formação. Mas, a pergunta que fica é: será mesmo que esse tipo de empresário quer funcionários mais bem preparados? Sandra Flosi Estar em Moçambique há mais de um ano tem me permitido ver coisas que embrulham o estômago. É verdade que há situações que eu esperava encontrar e nunca ocorreram mas, por outro lado, situações que eu nem imaginava existirem de tão toscas, podem aparecer estampadas no jornal como simples relato cotidiano.
Muitas delas dizem respeito às relações trabalhistas. Tenho pensado muito em como fazer um texto sobre o assunto. Mas, consideradas as diversas nuances e inúmeras situações que se relacionam com o tema, decidi por abrir uma série. E ela tem seu primeiro texto hoje, com notícia do jornal O País: Director do hospital acusado de espancar funcionária. No Chimoio, capital da província de Manica, o diretor do Hospital Provincial de Chimoio, Manuel Mussalafo, teria interpelado uma funcionária da farmácia da instituição, no final da sua jornada de trabalho, procurando saber o que a funcionária levava consigo na bolsa pessoal. “A farmacêutica não permitiu que o seu superior hierárquico revistasse a sua bolsa, daí que o director entendeu fazer o uso da violência, que, no entanto, não resolveu a curiosidade do director, mas sim resultou em ferimentos no braço direito da funcionária”, segundo relato do jornal. Na seqüência, o texto afirma que a “suposta vítima” poderá ser tida como culpada por desobediência ao seu superior. Vou repetir, para ficar mais claro: a pessoa que apanhou do chefe e teve seu braço ferido a ponto de sangrar poderá ser considerada culpada por não ter obedecido à ordem de abrir sua bolsa pessoal para ser revistada pelo seu superior hierárquico. E o diretor provincial de Saúde de Manica, Juvenaldo Amós, ainda explica na matéria que “é da legitimidade do responsável do hospital procurar saber o que qualquer funcionário leva consigo sempre que ocorrer a suspeita de desvio de qualquer propriedade hospitalar”. É assim que se procura saber? E ainda completa que se a funcionária era mesmo inocente não deveria proibir o chefe de revistar sua bolsa pessoal. O mais triste é que, recentemente, li o livro A construção social do Outro: perspectivas cruzadas sobre estrangeiros e Moçambicanos, dirigido pelo sociólogo Carlos Serra, com textos de Angélica João, Cremilo Bahule, Hilário Dyuty, João Feijó, Jonas Mahumane, Miguel Moto e Teles Hou, além, claro do próprio Carlos Serra. O livro é uma riquíssima fotografia das relações entre moçambicanos e estrangeiros. Além disso, o texto de João Feijó é mais específico nas relações trabalhistas e faz uma rica análise das relações entre empresários e trabalhadores chineses com moçambicanos em empresas estabelecidas em Maputo. Nele, é possível ler relatos que mostram que essa situação é cotidiana: “Da observação participante das dinâmicas laborais e dos discursos dos trabalhadores foi possível percepcionar que, perante uma situação de incorreção ou de morosidade, os encarregados chineses reagem com irritabilidade e brusquidão. Empurrar, bater nas costas ou na cabeça constituem reacções freqüentes”. Não quero dar uma de ingênua e dizer que isso não acontece mais em lugar nenhum do mundo. Lembro-me aqui de casos como a revista íntima feita em funcionários das Lojas Americanas, no Brasil. Mas, como mostra o texto Lojas Americanas são condenadas por revista íntima de funcionários a questão é tratada de forma bem diferente no Brasil (e acredito que em muitos outros países): com regulamentação, com discussão na justiça e com a divulgação do fato sendo um constrangimento para quem pratica a violência e não para a vítima. Sandra Flosi Ao mesmo tempo que vemos as empresas discutirem a questão da sustentabilidade, temos frequentemente na mídia uma chamada de atenção à questão do uso excessivo de matérias-primas e acompanhamos campanhas de utilização mais racional dos bens naturais, temos os produtos chineses ganhando cada vez mais espaço.
E qual é a característica desses produtos chineses? Justamente sua não sustentabilidade, o disperdício de matérias-primas em algo que vai durar muito menos do que o necessário e, portanto, vai precisar ser reposto, gastando novas matérias-primas, energia para a produção, transporte, etc. Moçambique abriga muitos imigrantes chineses. Cerca de 20 mil. Muitos deles empresários e a maioria trabalhadores da construção civil. São tantos que já se fala em criar um bairro chinês, que deve ser erguido no distrito de Catembe, em Maputo. O problema é que trazem com eles a cultura do descartável, do produto mais ou menos, só para resolver por agora, porque depois se compra outro. E isso em todas as instâncias. Inclusive na construção civil. Todos aqui já sabem que obra feita por chinês é edifício para viver em manutenção. No ano passado foi reinaugurado o famoso Hotel Polana. Os chineses pegaram um prédio antigo, com muitos problemas de conservação, para reformar. Entregaram um hotel novo (de gosto duvidoso em alguns aspectos, mas novo). Dois meses depois, no vestiário já se via ladrilhos rachados e em todo o hotel os chineses andavam às voltas com pequenos reparos. O aeroporto de Maputo também foi reconstruído. Fizeram um novinho ao lado do anterior, que era bem antigo, ainda todo em madeira, escuro, cara de aeroporto anos 40. O novo é todo cheio de vidro, ladrilhos claros, muito laminado, tudo produto chinês, claro. Mão-de-obra, idem. Antes mesmo de inaugurar, já havia notícias de infiltração. Mês passado foi inaugurado o estádio nacional do Zimpeto, em Maputo. Será palco dos Jogos Africanos, que acontecerão por aqui em setembro desse ano. A inauguração foi em grande estilo, com jogo da seleção de futebol de Moçambique contra a da Tanzânia. Mas, como foi dito em notícia do site CanalMOZ, nem tudo foi brilho na inauguração. No dia seguinte, pessoas que estiveram no local relatavam sobre cadeiras quebradas e detalhes mal feitos do acabamento daquela que seria a mais moderna infraestrutura desportiva construída no país após a Era colonial. E a prática não se restringe à Moçambique. Outro dia ouvi na rádio RDP África a notícia de que partes do reboco do teto do mercado Coco Coco, de São Tomé e Príncipe desabaram. O mercado foi reconstruído há alguns meses, por chineses, por meio de um financiamento de US$ 5 milhões oferecido pelo governo chinês ao governo local. Aqui em Moçambique a lógica para eles estarem em quase todas as obras também é a unicamente econômica, como parece ser em São Tomé e Príncipe. Ou o governo chinês financia ou as empresas chinesas ganham as licitações (concursos, como se diz aqui) por oferecerem o melhor preço. E, no ato do contrato, exigem que tudo, absolutamente tudo, venha da China (do material – até mesmo o mais sensível como vidro – à mão-de-obra). Como citei no texto Um outro estágio evolutivo, vivemos aqui em África um estágio evolutivo de democracia, gestão e administração muito diferente do que temos em outros lugares. Aqui ainda não se discute, por exemplo, a questão da sustentabilidade, menos ainda de gestão empresarial com foco nisso. O que pode até ser compreensível em uma realidade onde as pessoas estão preocupadas em ter como se sustentar no almoço de hoje. Mas, apesar disso, é preciso ter muita cautela. Quantas mortes, acidentes ou reconstruções terão que acontecer para perceberem que nem sempre o preço mais baixo é o melhor, especialmente quando se trata de construção civil? Veja também o que Eduardo Castro já publicou sobre o tema. Sandra Flosi Em junho de 2010, o Secretário-Geral da ONU (Organização das Nações Unidas), Ban Ki-moon, afirmou que suas sucessivas visitas ao continente africano serviam para reforçar sua convicção de que a região irá cumprir as Metas do Milênio. Eu não sei se o camarada é muito mal informado ou muito otimista. Mas, vendo a estrutura da ONU na África, tenho a impressão de que é mal informado.
Claro que tem gente fazendo trabalho sério aqui. Claro que tem funcionário da ONU que entende a realidade onde está. Mas não sei se são muitos. O que eu vejo são grandes estruturas, casas bem localizadas, com dezenas de escritórios, computadores, aparelhos de fax e tudo mais que é necessário para mandar os mais bem elaborados relatórios para o sr. Ban. Os funcionários são muito bem pagos e vivem com uma série de regalias (justo, afinal estão vivendo o sacrifício, não é?). Os carros nos quais eles andam, nem vou comentar… Enquanto isso, a 30 minutos da capital de Moçambique, crianças morrem de fome e comunidades inteiras são dizimadas pela Aids. Há alguns dias, o ministro da saúde de Moçambique, Alexandre Manguele, disse estar envergonhado com a alta taxa de mortalidade materna no país, estimada em 579 mortes por cada 100 mil nascimentos, de acordo com notícia da Agência Lusa. Para atingir as metas que a ONU estabeleceu para serem alcançadas até esse início de milênio (ano de 2015), o número teria que cair de 579 mulheres mortas para 250. Apesar de Moçambique vir registrando redução contínua nesse índice (sim, era pior!) e da ONU dizer que o país “tem potencial” para atingir a meta, quem conhece a vida real está preocupado. “A realidade é que a mortalidade infantil continua elevada, a mortalidade materna continua a envergonhar-nos, a prevalência da malária e a tuberculose continuam a preocupar-nos. A desnutrição continua a ser o pano de fundo da maioria das doenças na infância”, por isso, “a saúde está longe daquilo que todos desejamos que seja o nosso país”, reconheceu o ministro, em citação da Agência Lusa. Há um ano atrás, notícia da Agência de Informações de Moçambique informava que complicações de gravidez e parto matam onze mulheres por dia. Estudo divulgado pelo Ministério da Saúde referia ainda que, em cada mil crianças que nascem vivas por ano, 48 morrem, entre os zero e 28 dias de vida, por razões aliadas a problemas ocorridos durante a gravidez e o parto. Ao trabalhar em diferentes tipos e tamanhos de projetos sociais, aprendi muitas coisas e uma delas é que relatório de trabalho social não é avaliação de escola, onde você sempre tem que ter bom resultado. O mais importante em um projeto social é o relatório ser transparente e realista. Mesmo que isso signifique dizer que todo o trabalho dos últimos meses não resultou em nada ou até a situação está pior. Afinal, só analisando friamente é que se pode intervir da melhor forma, revendo métodos, ferramentas, pessoal e tudo mais que for preciso para levar o projeto para o caminho certo. Mas, infelizmente, acredito que muitos consultores têm medo de assumir que não estão tendo sucesso e acabam por “maquiar” os dados. Na matéria da Agência Lusa, o ministro da Saúde de Moçambique ainda observa que “a qualidade dos dados (da saúde) em geral é um assunto que merece uma reflexão”. Na verdade, acho que os dados que chegam ao sr. Ban carecem de ser mais realistas. Afinal, o milênio já está aí! Sandra Flosi |